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Mostrando postagens de dezembro, 2017

Do fim-dar

Há uma delicada e singela aspereza no correr desta tarde, e eu quero vivê-la em toda sua sofreguidão que se estende pra dentro de mim... Não quero mais, nem menos, quero apenas este transcorrer que me enleva e me acende pro inaudito da natureza. Quero apenas me dissolver na branca e carregada nuvem que sobrevoa a minha casa, e me deixar ser levada pra dentro de meus sentimentos pensados e desembrulhados pro mundo... Vou me sentindo ser no tempo e no espaço fugidio, sem querer agarrá-lo ou possuí-lo. Apenas sendo o canto de um pássaro, uma folha que cai, ou o bater das asas de uma borboleta. Não sofro por tudo que se esvai, nem tenho condescendência pela morte que abate. Calo sobre o nunca mais e esqueço a dor e a beleza de tudo que já foi um dia. 

Do instante

Captar o instante. Eis o maior desejo de todo ensaísta e amante. Captar e fruir o instante, com todos os detalhes insignificantes e tão simbólicos como a própria vida. Pintar o instante com todas as misturas de tintas, todas aquelas que forem necessárias pra exprimir aquilo que é no momento que está sendo. Dedos como pincéis e cores como corcéis livres a escrever o destino fortuito e incerto. A paixão pelo instante pintado com fidelidade, instante pintando como instante, um duplo do mesmo que passa de uma coisa a outra sem diferença ontológica, apenas com diferença estética. Criação de diferença pela percepção da diferença. Pintar o instante fugidio sem medo das metades subjetivadas, sem vergonha de não saber com exatidão aquilo que escapa. Rasgar a folha em branco com o que brota do agora: dor, destino, desistência. Cravar as unhas no presente pra fazer escorrer o sangue que revela a vida, a pulsação, aquilo que ainda arde no fértil ventre da escrita.

Aforismo da serenidade pretensiosa

Sim, todos ultrapassaram e venceram a corrida... Mas quem disse que a corrida era o que importava? Onde se chega, e pra onde se vai? O que se ganha, afinal? Há medo em se descobrir ser o que se é, eu sinto. E por isso se veste mantos e máscaras. E por isso se trai e condena. Há medo em ser o que se é... A corrida não é pra vencedores, mas pra medrosos e desesperados. Corrida pra não perder aquilo que está perdido já desde a largada. E nem ao menos se sabe pra onde vai e no que vai dar. Mas meus passos são de caminhada, sem pressa, de andarilha solitária. O que quero não está na chegada, está na possibilidade invisível de cada dia, de uma nova descoberta, de um sentir firme e efêmero que só se conquista com serenidade e entrega. O que quero não é uma meta, uma coisa ou um prêmio. É inefável, transcendental, inexplicável. Mas pode ser sentido com a alma despida, com o coração frágil e nu lançado ao vento.

Des pedaços

Mais alguns cacos Pedaços arrancados Nem sempre (ou nunca?) A mesma jamais Se vai e acaba Finda a tempestade? Não espero a trovoada Levanto e aceno Sigo andando... Não sei se pra frente Ou ainda pra trás Dos pedaços me desfaço O que fica Nunca eu mesma Nem eu, nem a mesma Apenas a estrada A velha estrada Rumo ao oeste Ao encontro do depor do sol Onde as sombras desaparecem E nada é mais isso ou aquilo É só mais um Mais um dia Mais um caco Mais um pedaço Do qual me desfaço Lembranças do jamais.

Antiontem

Maravilhamento, espanto, perplexidade, atordoamento... Percepção de que as histórias que nos contaram não dão conta, que o que dizem ser natureza, mundo, humano, homem, mulher, animal, nos levam a erros grosseiros: insuficiências dogmáticas, físicas problemáticas, religiões parasitárias, generalizações apressadas: a filosofia nos permite ter calma diante das ânsias destruidoras, prestar atenção aos detalhes e confeccionar nossas cosmovisões com fios poéticos, sutis, intuitivos, que em muito ultrapassam as definições instituídas e cravadas no peito do mundo, numa singela e persistente tentativa de salvá-lo, de salvar-nos, da declaração de morte sentenciada pelas ontologias falidas. É abrir nossos poros ao que ainda pulsa desconhecidamente em um universo infinito.

Aforismo 366

Imagem
Veio com o peito aberto, exposto, jorrando seiva fecunda. Abertura tamanha que nela cabia o mundo, o céu e as estrelas, mais o infinito e todo o amor impossível. O que isso dizia? Que não havia espaço - e nem tempo - para o medo. Que o medo, monstro cruel e covarde, inimigo do instante, devorava os seus filhos hesitantes, e num único passo contido, perdia-se o direito à eternidade. Veio com o peito escancarado, para ensinar que quando se abre o coração o universo se expande e o buraco negro da solidão se vira ao avesso, espalhando novas sementes de amor e esperança, que vão gerar vida aonde ainda houver fertilidade: o buraco negro vira placenta de incontáveis mundos que se precipitam no porvir - sem medo! Ainda dizia mais: que as feridas cardíacas são crias do fechamento do peito, e que a cura está na abertura, no escancaramento das dores, do amor, do desejo, livre do controle da matéria morta, do cálculo da bolsa de valores e do metro quadrado dos muros e das portas.

Ensaio I

Decidi falar como as palavras me ocorrem: sou de inspiração lispectoriana. Escrever o que me advém, não para o proveito de outrem, ou para a minha edificação, menos ainda para vossa análise; decidi falar apenas por deleite e volúpia, porque me dá prazer escrever juntando palavras rolando ao vento. Sou também de inspiração montaigneana (não posso negar). Esse prazer de costurar sons e símbolos, tacando o foda-se para toda regra e ordem eclesiástica, é algo como um longo e reconfortante suspiro, que abre meu peito e revigora cada molécula que em mim vibra. Não que eu creia em mim e naquilo que digo, mas apenas porque falar ou escrever é o meu exercício predileto, ginástica de pescar e contorcer palavras, sentidos, impressões... É tanta opressão e dever que talvez seja o espaço da folha em branco um dos únicos que resta de liberdade plena. Sim, de poder. escrever é um tipo de poder, porque é criação. Não a partir do nada, mas a partir de tudo aquilo que já existe, cada letra, sílaba, pal

Precisava dizer

Eu não queria dizer, mas esse tipo de verdade, que não é bem a Verdade, precisa ser dita. Você, você e você eram pra mim um interdito, um bloqueio e uma barreira que me oprimiam na minha maneira de ser e ver a vida. Não que eu tivesse uma maneira já definida, ou que fosse já muita coisa, mas é que vosso comportamento de superego, de patriarca oniciente, atravessava a minha garganta, algemava as minhas palavras e me fazia gaguejar em pensamentos. O que era isso? O que isso significa? Certamente que eu sou neurótica, e que me sinto perseguida... Mas não tão certamente a neurose encoberta de vocês, a misoginia enfeitada e maquiada que expressavam como caridade compreensiva da inferioridade feminina. Claro, não em relação a todas as mulheres, afinal, existem muitas que se enquadram em seus padrões, modelos e critérios de avaliação. Mas apenas em relação à maioria delas, com suas desordens cognitivas e suas contradições lógicas. E não apenas mulheres, afinal, são muitos os desprovidos da i